O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo
Por Ricardo Gozzi
A leitura da trilogia “O Tempo e o Vento” vai além do simples ato de pegar um livro e descobrir o que o escritor resolveu registrar em suas páginas. A saga das famílias Terra e Cambará, narrada por Erico Veríssimo na fictícia cidade gaúcha de Santa Fé, cobre 200 anos de história do Rio Grande do Sul e do Brasil e leva o leitor à aventura de uma vida – ou de várias vidas.
Porque ler “O Tempo e o Vento” é uma aventura, a começar pelos números que envolvem a obra. “O Tempo e o Vento” é uma trilogia que se espalha por mais de 2.600 páginas divididas em sete livros na recente edição, lançada em 2009 pela Companhia das Letras. As duas primeiras partes – “O Continente” e “O Retrato” – são apresentadas em dois volumes cada; a última – “O Arquipélago” – divide-se em três tomos.
Erico Veríssimo levou mais de uma década para concluir essa obra-prima da literatura brasileira. O escritor gaúcho começou a escrever o primeiro volume de “O Continente” em 1947, lançando-o dois anos mais tarde. O último livro de “O Arquipélago” veio a público somente em 1962. No entanto, as primeiras anotações do autor para o livro datam de 1935, o que elevaria a 27 anos o tempo total de "gestação" dessa saga, como mostram os manuscritos reproduzidos nos Cadernos de Literatura sobre a obra do escritor.
Aos olhos de quem tem medo de livro grande, sua leitura pode parecer impressionante, algo próximo do impossível, ou uma missão para aventureiros preparados, como quem escala o Everest ou resolve dar a volta ao mundo em cima de uma motocicleta ou de um veleiro. Mas Erico Veríssimo possui alguma fórmula mágica.
Os ingredientes principais talvez sejam a simplicidade, a clareza e a falta de pressa narrativa, sem contar a bagagem especial do próprio autor. E essa fórmula faz com que a leitura, uma vez iniciada, flua sem restrições. Uma vez iniciada a aventura, não há remédio, é preciso ir até o fim para descobrir o que reserva essa experiência da primeira linha ao último ponto final.
O Continente
A saga começa nos dois volumes de “O Continente”, publicados originalmente em 1949. A narrativa do cerco ao Sobrado, no fim do século 19, espalha-se na forma de pílulas, intercalada por histórias que, sozinhas, já seriam dignas de livros à parte - como, aliás, aconteceu com os capítulos “Ana Terra” e “Um Certo Capitão Rodrigo”.
Praticamente todos os personagens mais importantes da trilogia são apresentados já em “O Continente”. Desde Licurgo e Maria Valéria, presentes no cerco ao Sobrado, a Ana e Bibiana Terra, o capitão Rodrigo e Luzia Silva, além de Rodrigo Terra Cambará, filho de Licurgo e em torno de quem girarão “O Retrato” e “O Arquipélago”, apresentado ainda na infância.
O cerco ao Sobrado, a cidadela herdada pela família Terra Cambará como resultado da guerra surda entre a velha Bibiana e a nora Luzia, é o fio condutor entre o passado e o futuro. Quatro gerações de Terras e Cambarás estão ali presentes no desfecho da Revolução Federalista, em 1895, cercadas pelos maragatos – contra os quais Licurgo luta durante quase toda a vida e ao lados dos quais morre lutando, décadas mais tarde. Mantido a grande custo apesar do acirrado cerco, o casarão ganha ares de palco principal em “O Retrato” e “O Continente”.
É marcante a elegância com que Erico Veríssimo faz desaparecer discretamente parte de importantes personagens, especialmente as femininas, quase todas levadas pela passagem implacável do tempo, como Luzia Silva, Ana e Bibiana Terra. Talvez para contrabalançar isso não falte sangue em mortes como a do Capitão Rodrigo e a de seu filho, Bolívar, exemplos do ditado familiar segundo o qual “Cambará macho não morre na cama”.
Apesar das diversas guerras que envolvem a região no período de formação do Rio Grande do Sul, não se trata de um livro belicista, avalia Regina Zilberman, doutora em Letras pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Pelo contrário, sublinha o que essas lutas tiveram de sacrifício, de que é sintomática a vida breve de quase todas as figuras masculinas”, escreve ela na apresentação da edição publicada pela Companhia das Letras em 2009. O tom pacifista da obra, diz ela, manifesta-se sob o prisma das mulheres, que perdem os maridos e os filhos nas sucessivas guerras que resultariam no estabelecimento das atuais fronteiras do Brasil na região Sul.
A primeira parte da trilogia é, de todas, a mais dominada pela ficção. “O Continente” já é, indiscutivelmente, um romance histórico, mas, talvez até pela ausência de documentos e registros das épocas abordadas, é nele que Erico Veríssimo parece ter mais liberdade de criar.
O Retrato
De volta a Santa Fé depois de ter ido estudar medicina em Porto Alegre, o jovem e idealista Rodrigo Terra Cambará busca estabelecer-se em sua terra natal e depara-se com uma batalha já perdida de início contra seus próprios impulsos. Admirado com a vitalidade do amigo, o desacreditado artista anarquista Pepe García decide pintar um retrato de Rodrigo. O pintor dedica sangue, suor e alma à confecção do quadro. O resultado do trabalho do pintor, no qual ninguém botava muita fé, é uma obra-de-arte. Nas palavras de Maria Valéria, tia e madrinha de Rodrigo, o quadro “só falta falar”.
As grandes vítimas da genialidade do pintor são o próprio artista e seu modelo. A criatividade de Pepe García esgota-se no retrato, como se ao quadro ele tivesse dedicado todos os seus esforços e tornado-se estéril ao encerrá-lo. Já Rodrigo passa a definhar. A altivez com que é retratado por Pepe García jamais será a mesma novamente, numa espécie de “O Retrato de Dorian Gray” (obra de Oscar Wilde) às avessas.
Paralelamente à decadência pessoal de Rodrigo desfila a decadência social de Santa Fé na passagem do século 19 para o 20, projetada nas conseqüências do jogo de alianças políticas dos oligarcas locais com líderes gaúchos como Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, consolidando “O Tempo e o Vento” como um romance histórico.
O Arquipélago
Erico Veríssimo usa e abusa das relações de suas personagens com personalidades da história brasileira na parte final de “O Tempo e o Vento”, aperfeiçoando-o como romance histórico. Ele também apresenta aos leitores um alter-ego, o escritor Floriano Cambará, filho de Rodrigo e Flora, um intelectual em busca de inspiração para uma carreira literária sólida.
A história do Brasil na primeira metade do século 20 serve de pano de fundo para o salto da influência da família Terra Cambará do âmbito meramente local para uma escala nacional. Depois de muitos anos no Rio de Janeiro, ao lado do amigo e aliado Getúlio Vargas, Rodrigo retorna a Santa Fé após a queda do Estado Novo, derrotado politicamente. Com a vida por um fio por conta de uma série de problemas cardíacos, luta contra o imponderável para não se tornar no primeiro Cambará macho a morrer na cama.
O retorno de Rodrigo a Santa Fé acaba por reunir todo o clã Terra Cambará e força um acerto de contas familiar. No meio do caminho, Floriano vai juntando as peças para o romance definitivo que pretende escrever. E Erico Veríssimo acaba por encerrar “O Arquipélago” exatamente como haveria de começar “O Continente”.
A leitura da trilogia “O Tempo e o Vento” vai além do simples ato de pegar um livro e descobrir o que o escritor resolveu registrar em suas páginas. A saga das famílias Terra e Cambará, narrada por Erico Veríssimo na fictícia cidade gaúcha de Santa Fé, cobre 200 anos de história do Rio Grande do Sul e do Brasil e leva o leitor à aventura de uma vida – ou de várias vidas.
Porque ler “O Tempo e o Vento” é uma aventura, a começar pelos números que envolvem a obra. “O Tempo e o Vento” é uma trilogia que se espalha por mais de 2.600 páginas divididas em sete livros na recente edição, lançada em 2009 pela Companhia das Letras. As duas primeiras partes – “O Continente” e “O Retrato” – são apresentadas em dois volumes cada; a última – “O Arquipélago” – divide-se em três tomos.
Erico Veríssimo levou mais de uma década para concluir essa obra-prima da literatura brasileira. O escritor gaúcho começou a escrever o primeiro volume de “O Continente” em 1947, lançando-o dois anos mais tarde. O último livro de “O Arquipélago” veio a público somente em 1962. No entanto, as primeiras anotações do autor para o livro datam de 1935, o que elevaria a 27 anos o tempo total de "gestação" dessa saga, como mostram os manuscritos reproduzidos nos Cadernos de Literatura sobre a obra do escritor.
Aos olhos de quem tem medo de livro grande, sua leitura pode parecer impressionante, algo próximo do impossível, ou uma missão para aventureiros preparados, como quem escala o Everest ou resolve dar a volta ao mundo em cima de uma motocicleta ou de um veleiro. Mas Erico Veríssimo possui alguma fórmula mágica.
Os ingredientes principais talvez sejam a simplicidade, a clareza e a falta de pressa narrativa, sem contar a bagagem especial do próprio autor. E essa fórmula faz com que a leitura, uma vez iniciada, flua sem restrições. Uma vez iniciada a aventura, não há remédio, é preciso ir até o fim para descobrir o que reserva essa experiência da primeira linha ao último ponto final.
O escritor em seu escritório, em Porto Alegre |
O Continente
A saga começa nos dois volumes de “O Continente”, publicados originalmente em 1949. A narrativa do cerco ao Sobrado, no fim do século 19, espalha-se na forma de pílulas, intercalada por histórias que, sozinhas, já seriam dignas de livros à parte - como, aliás, aconteceu com os capítulos “Ana Terra” e “Um Certo Capitão Rodrigo”.
Praticamente todos os personagens mais importantes da trilogia são apresentados já em “O Continente”. Desde Licurgo e Maria Valéria, presentes no cerco ao Sobrado, a Ana e Bibiana Terra, o capitão Rodrigo e Luzia Silva, além de Rodrigo Terra Cambará, filho de Licurgo e em torno de quem girarão “O Retrato” e “O Arquipélago”, apresentado ainda na infância.
O cerco ao Sobrado, a cidadela herdada pela família Terra Cambará como resultado da guerra surda entre a velha Bibiana e a nora Luzia, é o fio condutor entre o passado e o futuro. Quatro gerações de Terras e Cambarás estão ali presentes no desfecho da Revolução Federalista, em 1895, cercadas pelos maragatos – contra os quais Licurgo luta durante quase toda a vida e ao lados dos quais morre lutando, décadas mais tarde. Mantido a grande custo apesar do acirrado cerco, o casarão ganha ares de palco principal em “O Retrato” e “O Continente”.
É marcante a elegância com que Erico Veríssimo faz desaparecer discretamente parte de importantes personagens, especialmente as femininas, quase todas levadas pela passagem implacável do tempo, como Luzia Silva, Ana e Bibiana Terra. Talvez para contrabalançar isso não falte sangue em mortes como a do Capitão Rodrigo e a de seu filho, Bolívar, exemplos do ditado familiar segundo o qual “Cambará macho não morre na cama”.
Apesar das diversas guerras que envolvem a região no período de formação do Rio Grande do Sul, não se trata de um livro belicista, avalia Regina Zilberman, doutora em Letras pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Pelo contrário, sublinha o que essas lutas tiveram de sacrifício, de que é sintomática a vida breve de quase todas as figuras masculinas”, escreve ela na apresentação da edição publicada pela Companhia das Letras em 2009. O tom pacifista da obra, diz ela, manifesta-se sob o prisma das mulheres, que perdem os maridos e os filhos nas sucessivas guerras que resultariam no estabelecimento das atuais fronteiras do Brasil na região Sul.
A primeira parte da trilogia é, de todas, a mais dominada pela ficção. “O Continente” já é, indiscutivelmente, um romance histórico, mas, talvez até pela ausência de documentos e registros das épocas abordadas, é nele que Erico Veríssimo parece ter mais liberdade de criar.
O Retrato
De volta a Santa Fé depois de ter ido estudar medicina em Porto Alegre, o jovem e idealista Rodrigo Terra Cambará busca estabelecer-se em sua terra natal e depara-se com uma batalha já perdida de início contra seus próprios impulsos. Admirado com a vitalidade do amigo, o desacreditado artista anarquista Pepe García decide pintar um retrato de Rodrigo. O pintor dedica sangue, suor e alma à confecção do quadro. O resultado do trabalho do pintor, no qual ninguém botava muita fé, é uma obra-de-arte. Nas palavras de Maria Valéria, tia e madrinha de Rodrigo, o quadro “só falta falar”.
As grandes vítimas da genialidade do pintor são o próprio artista e seu modelo. A criatividade de Pepe García esgota-se no retrato, como se ao quadro ele tivesse dedicado todos os seus esforços e tornado-se estéril ao encerrá-lo. Já Rodrigo passa a definhar. A altivez com que é retratado por Pepe García jamais será a mesma novamente, numa espécie de “O Retrato de Dorian Gray” (obra de Oscar Wilde) às avessas.
Paralelamente à decadência pessoal de Rodrigo desfila a decadência social de Santa Fé na passagem do século 19 para o 20, projetada nas conseqüências do jogo de alianças políticas dos oligarcas locais com líderes gaúchos como Pinheiro Machado e Borges de Medeiros, consolidando “O Tempo e o Vento” como um romance histórico.
O Arquipélago
Erico Veríssimo usa e abusa das relações de suas personagens com personalidades da história brasileira na parte final de “O Tempo e o Vento”, aperfeiçoando-o como romance histórico. Ele também apresenta aos leitores um alter-ego, o escritor Floriano Cambará, filho de Rodrigo e Flora, um intelectual em busca de inspiração para uma carreira literária sólida.
A história do Brasil na primeira metade do século 20 serve de pano de fundo para o salto da influência da família Terra Cambará do âmbito meramente local para uma escala nacional. Depois de muitos anos no Rio de Janeiro, ao lado do amigo e aliado Getúlio Vargas, Rodrigo retorna a Santa Fé após a queda do Estado Novo, derrotado politicamente. Com a vida por um fio por conta de uma série de problemas cardíacos, luta contra o imponderável para não se tornar no primeiro Cambará macho a morrer na cama.
O retorno de Rodrigo a Santa Fé acaba por reunir todo o clã Terra Cambará e força um acerto de contas familiar. No meio do caminho, Floriano vai juntando as peças para o romance definitivo que pretende escrever. E Erico Veríssimo acaba por encerrar “O Arquipélago” exatamente como haveria de começar “O Continente”.
Obra universal
A trilogia “O Tempo e o Vento”, de Erico Veríssimo, costuma ser rotulada como uma saga abrangendo cerca de dois séculos da história do Rio Grande do Sul, e marginalmente a do Brasil no mesmo período. Mas ela é mais que isso. É uma obra universal, capaz de explicar o macrocosmo a partir do micro.
Ao propor sua visão sobre o comportamento e organização social dos gaúchos, Veríssimo acaba, incidentalmente, expondo as qualidades e os defeitos dos brasileiros e da humanidade como um todo, com seus amores, medos e preconceitos, de acordo com o ponto de vista de cada personagem.
Masculino e feminino são muito patentes na obra. As mulheres são, em sua maioria, personagens fortes, guardiãs dos valores morais e protetoras do seio familiar, constantes como o tempo; os homens, salvo exceções, servem como elemento desestabilizador, imprevisíveis como o vento.
O que talvez mais impressione na obra de Erico Veríssimo é a forma simples e eficaz de sua narrativa. Para ser um grande escritor não é preciso ser rebuscado, não é preciso ser prolixo, não é preciso parecer complicado, não é preciso experimentar fórmulas novas. Não existe fórmula pronta para isso. Erico Veríssimo optou pela clareza na exposição de suas ideias, e consagrou-se como um grande contador de histórias.
Fonte: http://www.guiadeleitura.com/2010/08/especial-o-tempo-e-o-vento-de-erico.html
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